O artista, construtor de cidades

É comum o entendimento de que toda prática artística, circunscrita ao campo das artes visuais, endereçada à cidade é lida como “arte pública”. Esta adjetivação não é senão simplista, e por vezes equivocada, pois trata com imprecisão a noção de coisa “pública”, ao equalizar à dimensão do espaço urbano ao seu caráter indubitavelmente público. Que mecanismos garantem que o encontro com um trabalho de arte o torne efetivamente público? De outro lado, por quê uma obra pertencente ao acervo de um museu público não haveria de levar o mesmo adjetivo qualificador? Se tomarmos a máxima de Paulo Mendes da Rocha e pressupor que “toda a arte é, por definição, pública”[1] – isto é, a princípio, não haveria arte de caráter “privado” – a definição acima seria ainda mais imprecisa.

Ora, sobre a discussão do termo, Daniel Buren[2] sinaliza mais adiante a implicação da interdependência de campos que tradicionalmente são entendidos como opostos: o público e o privado. Debruçar-se sobre essa antiga dialética exige um esforço mais amplo do que o mapeamento das especificidades nas fronteiras entre indivíduo e comunidade; envolve imprecisões da chamada esfera pública em diversos níveis, políticos, sociais e físicos – estes últimos tomados no âmbito do urbano e do arquitetônico. Aspectos do poder público, da privatização e do mercado, termos como espaço público e espaço semi-público, conceitos como domesticidade e publicização problematizam os níveis de sociabilidade na metrópole e implicam em “capacidades” contemporâneas possíveis de apropriação e pertencimento.

Por outro lado, o senso comum leva à crer que para lidar com a cidade e tomá-la como disparador de um trabalho, a arte deve acontecer necessariamente na duração e no substrato do espaço urbano, o que reduziria a potência do trabalho à sua realização extra-muros, condicionada a uma experiência no instante mesmo do acontecimento da obra.

Casa Verde, trabalho de Rubens Mano realizado em 1997, revela a potência latente que pode existir em uma obra, cuja apreensão não acontece no momento da intervenção, mas é apresentada como (re)construção de uma ação cotidiana na paisagem da cidade, materializada pela fotografia. Ora, a natureza da fotografia não é senão o índice de algum lugar, coisa ou fato ocorrido.

Trata-se do registro de um acontecimento na cidade de São Paulo; sua localização é dada de início pelo título do trabalho, que corresponde à avenida principal do bairro paulistano, de mesmo nome. Imediatamente o observador é levado a reconstituir aquele lugar no imaginário, e redefini-lo espacialmente como uma paisagem característica dessa cidade – tanto pela sua condição topográfica (lembrando aqui das palavras precisas do geógrafo Aziz Ab’Saber, “São Paulo é um mar de morros”), como pelas ruínas temporárias produzidas pelo resíduo de demolição à espera de um novo empreendimento.

O interesse em se trabalhar com as demolições na cidade era algo que perseguia o artista há tempos, segundo depoimento de Mano, e de modo geral essas transformações fazem parte do dia-a-dia do paulistano. São Paulo vive em permanente demolição desde sua fundação. Para a urbanista Sarah Feldman, o binômio demolição/reconstrução sempre foi a lógica dominante na configuração da cidade. Neste caso, é como se Mano buscasse perseguir as razões dessa prática para entender o fenômeno.

Em Casa Verde, os destroços da edificação indicam que ali se congelou uma operação de demolição no bairro, pondo abaixo uma construção colonial, revelada pelas configurações longitudinais do terreno e da tipologia da construção que restou (espécie de “casca”) – com embasamento do piso, conformação do telhado, forro de estuque, entre outros sinais dos tempos.

A substituição da arquitetura colonial – que constituiu a morfologia urbana no início da formação da metrópole, e que resultou em um skyline horizontal por décadas, com edificações ensimesmadas típicas da vida “recatada” portuguesa – por uma nova imagem de cidade, verticalizada e permanentemente em ruínas, é uma das latências que emergem do trabalho do artista.

A atividade de demolição geralmente é desempenhada por empresas especializadas. Aqui, o artista altera os processos de demolição comumente adotados pela engenharia civil. A imagem dá indícios de uma negociação feita entre as partes para que o artista pudesse orquestrar a ação de tal modo a determinar as etapas do desmanche. Nessa operação, Mano trabalhou junto à demolidora, afim de iniciar a derrubada pelas paredes internas, criando-se um grande eixo longitudinal em relação ao terreno, aberto à cidade. O processo de demolição foi alterado para dar vazão a uma nova “construção” naquele lugar, feita por subtração, e condensada pela fotografia.

A orquestração revela um procedimento “performático” do próprio artista na cidade, que, de modo silenciado, vai deixando pequenos rastros disruptivos no cotidiano da vida paulistana (esse tipo de operação aparece igualmente em outros trabalhos de Mano, como a série de fotografias de bueiros, onde intervém nos espaços ao acentuar a luminosidade do vazio obscuro, criando algo místico. De novo, uma espécie de mistério a ser desvendado pelo expectador).

O entorno da ruína é propositalmente enquadrado naquela imagem, e ajuda a contextualizar o lugar em transformação: o barracão de madeirite sinaliza algo já em planejamento; o empreendimento imobiliário pode ser bem maior do que um único lote. Os casebres do outro lado orientam o observador na leitura da vocação original daquele lugar, de uso residencial. Esta condição instável metaforiza a própria condição contemporânea da vida urbana, em vibração.

A fotografia aqui é a melhor metáfora da impermanência e da condensação de um acontecimento na cidade. Ela serve de testemunho do presente congelado, que se torna passado, mas também guarda uma suspensão do tempo por vir, em que não se sabe o seu decorrente. A imanência é parte constituinte da obra, é ela que desperta a curiosidade do observador em relação àquele lugar, na medida em que este imagina os desfechos daquela ação suspendida pela imagem.

Do ponto privilegiado do bairro da Casa Verde, as ruínas da arquitetura colonial são transformadas agora em uma janela para o mundo. A simetria da imagem, organizada em um eixo axial central, acentua ainda mais a perspectiva da paisagem e colabora para o enquadramento da metrópole ao fundo. Por meio de uma construção negativa, o artista convoca um olhar sobre aquela paisagem, sobre sua condição espacial urbana, cujo ponto de vista dificilmente é apreendido numa cidade tão construída e verticalizada como São Paulo[3].

A década de 1990 ainda não se constituía na avalancha imobiliária que se imprimiu nas décadas subsequentes, mas é como se a cidade tivesse desde o início este destino. De certo modo, é uma imagem nostálgica de uma cidade onde se podia avistar o horizonte. É como se Mano reivindicasse uma janela na futura edificação, provavelmente verticalizada, que interromperia a apreensão de uma condição física (topográfica) e histórica (tradicional) daquele lugar.

É nesse sentido, também, que a operação do artista repõe o problema do lugar, algo que a arte – especialmente a escultura – tem perseguindo desde o séc. XIX, com a crise da tradição moderna. As obras perderam seus significados e sua identidade na cidade em detrimento da autonomia da forma, tendendo a sua autorreferencialidade, que por sua vez foi novamente contestada ao reivindicar certa especificidade. Essa oposição parece ser o movimento dialético que se verifica na arte desde então – desde as esculturas de Auguste Rodin, passando pela arte abstrata, pelo minimalismo e pelo site specific work, entre outros.

De modo análogo, o paradigma moderno de cidade se constituiu como um campo neutro, assentado na ideologia do “novo”, cujo espaço deveria imprimir a máxima funcionalidade, em direção a construção de uma utopia. Esse modelo acentuou ainda mais as condições em que São Paulo foi edificada – e continua sendo, resultando numa cidade colagem, onde parece ser possível desvendar seus mistérios somente por meio de operações de subtração.

De volta à Casa Verde, a obra acentua a visibilidade dos processos dialéticos de construção e reconstrução da cidade, e por extensão, das práticas urbanas contemporâneas, ao transformar a arquitetura e o espaço daquele lugar e reivindicar sua especificidade ulterior. Mano subverte a lógica dos processos de apagamento na cidade – por meio de uma construção negativa – e faz ver uma cidade não visível em suas dimensões histórica, topográfica e arquitetônica.

A fotografia passa a ser o trânsito entre a memória daquele lugar (arquitetura) e a transformação da paisagem (cidade). Para se falar da cidade e suas dinâmicas, tomar de assalto o lugar e intervir neste de forma a ressignificá-lo espacial, temporal e esteticamente, a arte aqui prescinde dos rótulos publicizantes comumente adotados. Casa Verde imprime a vibração do acontecimento artístico transgressor da lógica paulistana e permite que a performance do artista se propague para além do lugar.

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[1] A frase foi proferida durante mesa redonda sobre “arte pública” realizada no âmbito da SP-ARTE em 2004, que contou com o artista José Resende e foi por mim mediada.

[2] BUREN, Daniel. “À força de descer à rua, poderá a arte finalmente nela subir?”. In DUARTE, Paulo Sérgio (ed.). Daniel Buren: textos e entrevistas escolhidos (1967-2000). Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 2001. p. 155-202.

[3] O desejo latente de se avistar a cidade tem transparecido com frequência na arte contemporânea, por meio do uso de escadas, mirantes, janelas, dispositivos que estendem a capacidade dos olhos de ver (e do corpo, de sentir) para além dos constructos urbanos.

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